domingo, 13 de setembro de 2015

O visto e o visível (2)

Caboz vermelho (Parablennius ruber)
Foto: David Villegas-Rios (FishBase)
Era já a terceira vez que Pedro se preparava para mergulhar em busca de cabozes vermelhos, e não tinha esperança de ter mais sucesso nesta que nas outras. A hipótese que queria testar sobre o comportamento da espécie entusiasmava-o, mas era preciso ver os animais primeiro. E isso estava a revelar-se muito mais difícil do que o professor tinha dado a entender. O que vale é que hoje o professor vinha também mergulhar- ia ser bom vê-lo provar do seu próprio remédio. Logo no início do mergulho, porém, o professor apontou ao Pedro um primeiro caboz, e logo outro, e outro. A partir daí ele passou a vê-los às dezenas, e conseguiu fazer o seu trabalho.
A subjetividade das interpretações que fazemos do mundo tem ocupado muitos filósofos, e as respetivas bases fisiológicas são hoje estudadas cientificamente. Por estranho que pareça, é difícil para as pessoas verem as coisas se não tiverem delas um modelo mental: a partir do momento em que sabia o que devia ver, os olhos do Pedro abriram-se.

George Lakoff há mais de 20 anos que chama a atenção para que o essencial da batalha entre esquerda e direita se deve travar ao nível dos modelos mentais. A direita já percebeu isso há muito tempo, e através do domínio da comunicação social introduziu a sua narrativa no inconsciente coletivo. Toda a gente sabe que Portugal estava na bancarrota por causa do comportamento despesista dos governos socialistas, que fomos salvos pela boa vontade dos credores e pela liderança de Passos Coelho, que temos uma dívida enorme para pagar e que por isso tivemos que fazer grandes sacrifícios, mas que conseguimos sair do programa de ajustamento e agora é só retomar o crescimento económico e tudo se vai compor. Temos é que votar PSD outra vez, porque senão todos os sacrifícios foram em vão. Do lado do PS a narrativa é basicamente a mesma, só que os vilões são do PSD. Se o PS fosse governo a austeridade não teria sido tão má, e se o PS fôr para o governo agora vamos recuperar o crescimento económico mais depressa.
E assim não se vê a iniquidade do sistema monetário, não se vê o crescimento obsceno da pobreza, não se percebe a insustentabilidade da exploração dos recursos naturais, ninguém se envergonha pelo domínio privado dos capitais públicos. Nada disto está escondido- mas a maioria das pessoas não o vê.
Mas a esquerda não pode deixar-se prender dentro deste modelo mental, antes deve promover o seu modelo alternativo. Deve defender o direito ao trabalho, uma economia ao serviço das pessoas, o valor intrínseco da biodiversidade, a dignidade essencial de todos os humanos, um setor público pujante e interventivo ao serviço do cidadão, a rejeição das privatizações e da lógica do lucro, a ética do cuidado do outro, da partilha e da colaboração.

A esquerda deve apontar o caminho, para que as pessoas vejam que outro mundo é possível. Quando descemos ao excel, já perdemos.

Orçamento com açucar

No final de uma série de audiências aos parceiros sociais e partidos políticos com assento parlamentar, no âmbito da preparação do Plano e Orçamento para 2016, o presidente do Governo Regional congratulou-se por as instituições públicas e privadas da Região terem conseguido efetivar uma “rede de solidariedade social que pudesse amparar os que estão numa situação de maior fragilidade”. Diz o Açoriano Oriental que o presidente “quer continuar a lutar por mais emprego para as famílias açorianas, mobilizando-se toda a sociedade açoriana, visando a requalificação de recursos humanos e incentivos ao investimento privado, bem como apoio às empresas.” Para aliviar a crise das quotas leiteiras, o executivo de Vasco Cordeiro “criou recentemente uma linha de crédito de cerca de 30 milhões de euros e tem feito um investimento “muito significativo” nas áreas que reforçam a competitividade das explorações agrícolas.”

Por outras palavras, reconhece-se que o governo é incapaz de resolver os terríveis problemas sociais causados pela austeridade, tendo a sociedade civil de se mobilizar para apoiar os que vão caindo pelo caminho. O desemprego será resolvido com apoios às empresas- aqui temos socialistas a defenderem a transferência de dinheiros públicos para mãos privadas, na vã esperança de que algum chegue aos que só pedem uma oportunidade para mostrar que têm valor e merecem o trabalho que lhes está constitucionalmente garantido. E quanto à monocultura da vaca, a proposta do governo aos agricultores à beira do abismo a que os conduziu a criminosa Política Agrícola Comum é que dêem um passo em frente: que se endividem ainda mais, que sejam mais competitivos, que produzam mais e mais barato, para Moçambique e para a China.

O presidente, mais que todos os outros, devia denunciar o flagelo da austeridade e lamentar que seja necessário que os cidadãos se mobilizem para oferecer sopas aos seus concidadãos, num gesto que a ambos empouquece. Um presidente devia usar os dinheiros públicos para financiar projetos públicos e cooperativos que criassem verdadeiros empregos, ou denunciar quem não o deixasse fazer isso. E devia reconhecer que o futuro da agricultura numa região ultraperiférica passa pelo local e pela qualidade, preparando o sector para a libertação da subsidiodependência.

Assim, apenas confirma o papel de “polícia bom” que o PS desempenha: aplicando as mesmas políticas neoliberais da direita, só que com mais açucar.

sábado, 5 de setembro de 2015

Pesca, mergulho e reservas marinhas- o caso dos Açores


O problema
Os Açores têm dado ao país e à Europa bons exemplos de gestão das pescas, aos quais não é alheia a estreita cooperação entre o Governo Regional e a Universidade. Entre os bons exemplos pode citar-se a proibição do uso de arrasto e de redes de emalhar de fundo (muito destrutivas para os delicados ecossistemas de profundidade), ou a manutenção de uma pesca do atum com arte de salto e vara (manual, muito seletiva e certificada como “dolphin safe”).

Apesar disso, o esforço de pesca nos Açores tem crescido continuamente nas ultimas décadas, e os indicadores disponíveis apontam para situações de sobreexploração em todas as pescarias. Para avaliar até que ponto os recursos pesqueiros estão sobre-explorados basta saber que a quantidade de peixe desembarcado em lota tem vindo a diminuir constantemente nos últimos 20 anos, apesar do grande aumento da capacidade de pesca (mais barcos, mais anzóis) no mesmo período.

Esta situação tem sido documentada repetidamente em artigos científicos e é reconhecida num recente relatório governamental requerido pela Diretiva Quadro da Estratégia Marinha.

Das situações mais graves destacamos a dos peixes demersais costeiros e dos grandes pelágicos, por serem aquelas em que se registam conflitos com atividades não extrativas e em crescimento na Região.

Os peixes costeiros sustentam a maioria dos pescadores açorianos: a frota de pesca dos Açores é constituída maioritariamente (80%) pelo segmento artesanal. Este segmento é uma fonte importante de sustento para muitas comunidades, particularmente nos últimos anos com o aumento do desemprego. A sobreexploração dos recursos pesqueiros costeiros coloca em risco a subsistência destas comunidades, mas também afeta negativamente a crescente atividade turística relacionada com o mergulho. De facto, as empresas desta área têm sido muito claras em apontar a rarefação dos peixes costeiros como um fator muito negativo para a experiência de mergulho dos seus clientes e, portanto, como uma limitação grave para a subsistência da sua atividade.

Mas é no setor dos grandes pelágicos que a sobrepesca é particularmente negativa, afetando um setor turístico emergente que procura projetar internacionalmente os Açores como locais privilegiados para a observação de grandes peixes oceânicos, como tubarões e jamantas. Desde a abertura da ZEE dos Açores, em 2003, que ao largo de todas as ilhas 70 barcos provenientes de Portugal continental e de Espanha se juntam aos quase 50 da Região na utilização de palangres de superfície. Um palangre de superfície é uma linha derivante carregada com dezenas de milhar de anzóis e que se estende por distâncias que chegam a atingir os 90 km! Calcula-see que as capturas ultrapassem o milhar de toneladas anual, mas ninguém sabe ao certo. Os seus efeitos, esses, são bem patentes para os operadores turísticos que, de ano para ano, registam uma diminuição do número de tubarões que os seus clientes conseguem ver.

A solução
O Livre/Tempo de Avançar recusa colocar em confronto a pesca e o mergulho, mas reconhece a insustentabilidade dos atuais padrões de exploração dos recursos pesqueiros. É necessário reduzir significativamente as capturas, aumentando ao mesmo tempo o rendimento dos pescadores. Para isso é necessário aumentar o valor do pescado mas também reter uma maior percentagem desse valor nas mãos de quem de facto o cria: os homens e as mulheres que fazem do mar o seu local de trabalho.

As reservas marinhas integrais (áreas nas quais são proibidas todas as atividades extrativas) são um instrumento simples e eficaz de garantir a estabilidade dos recursos pesqueiros e dos ecossistemas de que eles dependem. Em Portugal (e nos Açores) a percentagem do espaço marinho vedado à pesca é insignificante. No entanto, ao assinar a Convenção sobre a Biodiversidade Biológica, Portugal comprometeu-se no esforço de proteger até 10% dos oceanos mundiais até 2020. Callum Roberts, um dos maiores especialistas mundiais na matéria, considera este número demasiado baixo e defende que 30% de cada habitat marinho deveria ser integralmente protegido. O L/TdA defende que Portugal deve superar os seus compromissos internacionais e, no âmbito da revisão da Estratégia Nacional para a Conservação da Natureza e da Biodiversidade, criar no território nacional uma rede de reservas marinhas integrais cobrindo 30% dos diferentes habitats e adaptada às realidades regionais.

Reservar áreas nas quais não se pode pescar não necessita de afetar o rendimento dos pescadores. Pelo contrário: devidamente desenhadas, estas áreas aumentam significativamente a produtividade do mar que as rodeia. O problema é que os pescadores recebem apenas uma pequena fração do preço pago pelo consumidor. O L/TdA defende que deve ser facilitado o acesso de associações de pescadores, de diferentes tipologias, aos escalões superiores da cadeia de valor, nomeadamente fomentando as redes de produção e consumo local. Propõe ainda a adoção de medidas que visem atribuir a formação necessária e que incluam estímulos à formação de organizações de pescadores com capacidade de intervenção ao nível da gestão da pesca e da comercialização do pescado.

Portugal precisa de um setor pesqueiro vibrante e dinâmico que assegure um rendimento digno a todos os elementos da fileira e contribua positivamente para os setores circundantes. Mas precisa também de ecossistemas marinhos saudáveis e produtivos. Num quadro político e económico adequado, as duas situações podem complementar-se. É para esse quadro que temos que avançar!


Lajes do Pico, 3 setembro 2015

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O visto e o visível

Até 1983 não sabia que se comiam lapas. Ignorância minha, claro, mas essa não foi a única descoberta daquele dia de primavera, na Praia das Avencas. Na aula prática de Ecologia Geral vi, pela primeira vez, algo que sempre esteve visível de todas as muitas vezes que passeei por uma praia rochosa: a disposição dos organismos em faixas na zona das marés. Em todos os sítios em que há marés é possível observar o mesmo padrão de faixas horizontais de comunidades completamente distintas; na costa atlântica do continente português às laminárias sucedem-se, subindo na costa, as lapas e os mexilhões, a estes as cracas e a estas as litorinas.
O conhecimento sobre o mundo que nos rodeia começa com a busca de padrões, de regularidades, para as quais temos que procurar uma explicação. Depois de ver o padrão, a explicação é muitas vezes óbvia. Relaciona-se facilmente a zonação intermareal, por exemplo, com a subida e descida do nível do mar. Pode depois estudar-se o mecanismo envolvido. Neste caso é o gradiente de exposição ao ar: as espécies distribuem-se mais perto ou mais longe da água de acordo com a sua resistência à dessecação (nos organismos marinhos) ou à submersão (nos terrestres).
A compreensão da mensagem que os padrões nos transmitem, o conhecimento que ganhamos da nossa reflexão sobre o que vemos, tem o potencial de nos transformar. Quando Galileo apontou ao céu o seu telescópio e descobriu que Vénus tinha fases como a Lua foi forçado a concluir que o modelo ptolomaico estava incorrecto. Isso quase lhe custou a vida, mas a coragem de Galileo foi decisiva para impor a racionalidade como um princípio estruturante da vida em sociedade.
Atualmente há muitos padrões que estão à vista de todos mas que poucos vêm. Há outros que são deliberadamente escondidos. E há outros ainda que são criados artificialmente para moldar a nossa perceção do mundo- e as nossas ações. Este blogue pretende dar a ver o que poucos vêm, para que se faça o que precisa de ser feito.

Lajes do Pico, 29 agosto 2015

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Competir ou cooperar?



Por cima da cabeça de coral, pequenos bodiões afadigam-se a limpar de parasitas peixes muito maiores do que eles, enquanto outros clientes aguardam pacientemente a sua vez. De quando em vez, um dos limpadores sucumbe à tentação de dar uma dentada no próprio cliente, muito mais nutritivo, e este afasta-se bruscamente. Trata-se de uma prestação de serviços, com claras analogias a atividades económicas humanas.
O modelo económico atual é baseado na competição: uma pessoa tem uma ideia, protege-a para que outros não a copiem, e funda uma empresa para a desenvolver. Nesse processo tem que competir com outras empresas com produtos ou serviços similares- vence o que tiver o melhor produto, a melhor estratégia de marketing, o preço mais baixo ou uma combinação das anteriores. Presumivelmente, os pequenos bodiões devem o seu sucesso a uma estratégia competitiva que desalojou outras espécies do “negócio”.
A necessidade de aumentar a competitividade é hoje um lugar comum no discurso político e mediático. Em paralelo, o espírito competitivo estende-se a muitas outras áreas. Na educação, por exemplo, há quem defenda que as escolas possam competir pelo melhores alunos, assim como as universidades já o fazem. Por seu lado, os estudantes competem uns com os outros para obterem as melhores notas e assim assegurarem o ingresso no curso que pretendem. No mundo dos bodiões limpadores, talvez os que fazem batota mordendo nos clientes sejam os mais empreendedores e estejam destinados a suplantar os restantes, monótonos seguidores de regras invisíveis.
A mensagem com que somos bombardeados diariamente é simples: o sucesso (pessoal, das empresas, dos países) advém da competição e de restringir o fluxo de informação. Quem não tem sucesso é porque não foi suficiente forte para ultrapassar os competidores, ou partilhou informação que outros usaram para o prejudicar. Esta mensagem é muitas vezes associada também à natureza- “a lei do mais forte”, a lei da selva, seria a base da evolução das espécies, seleccionando os indivíduos que conseguem chegar mais alto, correr mais depressa ou atacar com mais ferocidade. O espírito empresarial é visto como uma aplicação da seleção natural à economia.
E no entanto a maioria dos bodiões limpadores priva-se por escolha própria de morder nos seus clientes, embora isso fosse mais vantajoso no imediato. É que os clientes são capazes de reconhecer os limpadores que não fazem batota, e preferem ser atendidos por eles. O comportamento altruísta é assim recompensado. É verdade que a competição entre espécies e entre indivíduos da mesma espécie é um mecanismo básico da evolução por seleção natural. Mas, como demonstrado por Martin Nowak, apenas a cooperação permite atingir novos níveis de organização. Foi a cooperação que permitiu criar células, seres pluricelulares, e sociedades. A espécie humana levou a cooperação a níveis nunca vistos no planeta, criando múltiplos níveis de organização desde a família, a aldeia, o país, até instituições de âmbito inter-continental e planetário. Entristece ver como o ênfase atual na competição está a corroer as bases do que de melhor os humanos construíram.

Lajes do Pico, 21 agosto 2015

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Fronteiras deslizantes



Se um déspota declarasse as suas intenções desde o início, nunca chegaria ao poder. Se Passos Coelho tivesse, em 2011, proclamado que até 2015 a divída pública iria aumentar para 130% do PIB, que a emigração levaria meio milhão de portugueses por falta de perspetivas de emprego no seu país, e que os salários e pensões dos que mantiveram o emprego seriam drasticamente cortados, teria seguramente perdido as eleições. A lógica é clara: quando se adivinha oposição a uma dada linha de atuação, o melhor é dar pequenos passos, cada um com uma explicação plausível, deslocando a fronteira do aceitável um pouco de cada vez.


A zona do juncal, nas Lajes do Pico, é protegida no âmbito da rede Natura 2000 pelo interesse regional, nacional e comunitário da fauna e flora que dela depende. Na justificação que foi dada para a classificação desta zona pode ler-se: “A plataforma de abrasão possui manchas de (...) Juncus sp. sobre rochas e calhau miúdo (...). Estas comunidades são extremamente vulneráveis e de difícil recuperação. Esta área representa um ponto de passagem e descanso de aves migratórias e acidentais, provenientes dos continentes europeu e americano.” Nesta zona, de acordo com o decreto regional que institui o Parque Natural da Ilha do Pico, estão obviamente interditas “As acções susceptíveis de provocar alterações ao equilíbrio natural.”


Há poucos anos foi temporariamente afetada uma área do juncal para apoio às obras de melhoria dos acessos à zona balnear da Maré. Terminada a obra a zona foi deixada evoluir naturalmente, sem nenhuma tentativa de reposição da vegetação original.


Na segunda semana de Agosto de 2015 a Câmara Municipal das Lajes do Pico utilizou uma retro-escavadora para terraplanar uma área que inclui e alarga a área anteriormente afetada. O objetivo: instalar uma “tenda eletrónica” para efetuar as “raves” durante a Semana dos Baleeiros. Apesar de violar claramente a legislação em vigor a obra tem (pasme-se!) parecer positivo da Direção Regional do Ambiente, presumivelmente por esta área estar descaracterizada… pelas obras anteriormente efetuadas. Tanta pressa havia na intervenção que não foi acautelado o facto de se localizar em domínio público marítimo. No momento em que escrevo a obra está parada por ter sido embargada pela Autoridade Marítima, mas tenho informação de que deverá avançar e estar pronta a tempo da festa. Durante uma semana, portanto, por sobre uma comunidade vegetal “extremamente [vulnerável] e de difícil recuperação”, e sem respeito por “um ponto de passagem e descanso de aves migratórias e acidentais”, dezenas de jovens dançarão ao som ensurdecedor da música que DJs empenhados disponibilizarão.


Imagino já que, depois da festa, o terrapleno será cimentado para instalação de um bar de apoio aos utentes da zona balnear, o qual será retirado em 2016 para instalação de nova tenda. É até possível que a tenda seja maior que a deste ano, e que seja preciso alargar o terrapleno. Dada a descaracterização até lá efetuada, não me parece difícil obter novo parecer positivo das entidades responsáveis pela conservação da natureza. E assim, pouco a pouco, se irão deslizando as fronteiras, até do juncal e das aves restar apenas a memória.

Lajes do Pico, 20 de Agosto de 2015

sábado, 10 de maio de 2014

Da busca das causas finais

Lembro-me de ser muito pequeno (6 anos? 8?) e de, num passeio que dava sozinho, me ter deparado com uma cena assustadora: um homem gritava e espancava brutalmente um pequeno burro. Quando me aproximei percebi que a carroça que o burro puxava tinha uma roda presa num valado, e o pobre animal não tinha obviamente forças para a tirar de lá. Aterrado, mesmo assim encontrei forças para procurar uma trave forte e interpelar nervosamente o homem, mostrando-lhe que se aplicasse uma alavanca ao eixo da carroça facilitaria o trabalho do animal.

Decorrem deste episódio duas consequências. A imediata foi que um homem violento e enraivecido seguiu o conselho de uma criança e o burro lá continuou, coxeando, o seu caminho; a secundária foi esta minha inclinação para procurar as verdadeiras causas dos problemas e a forma mais eficiente de os resolver.

Por ter esta tendência, acabo por ligar factos que às vezes parecem isolados. Quando vejo, por exemplo, as notícias sobre o galgamento do mar na costa portuguesa e o desaparecimento das praias acredito que isso tenha relação com o aquecimento global, por um lado, e por outro com as barragens que cortam todos os nossos rios principais e impedem o natural reabastecimento da areia ao litoral. E a propósito das barragens acrescente-se o seu impacto negativo direto sobre a biodiversidade, ao impedirem as migrações dos peixes e inundarem galerias ripícolas, reduzindo o habitat de espécies ameaçadas. Ouço as notícias sobre os fogos florestais e não posso deixar de os associar ao modelo de gestão silvícola que tem sido aplicado, que promove monoculturas de elevada densidade e extensão. Desgosta-me aqui em São Miguel ver a espuma acumulada nas margens da Lagoa das Furnas, cujo espelho de água é tantas vezes dominado por uma repulsiva massa de algas verdes, mas sei que isso tem relação com o regime intensivo de adubagem das pastagens que forram a respetiva bacia hidrográfica.

Ora pode recuar-se mais um passo e perguntar o que é que tudo isto tem em comum. Alguma coisa liga a construção contínua de barragens, as monoculturas florestais e a agricultura intensiva? E também aqui a resposta me parece óbvia: o denominador comum é um determinado modelo de desenvolvimento que coloca as pessoas contra o ambiente, que explora recursos que são de todos em benefício apenas de alguns, sobrecarregando os restantes com as externalidades negativas.

Poderia ser de outra maneira. E há muitas pessoas que sabem que poderíamos ter outro desenvolvimento, que poderíamos dar prioridade à qualidade sobre a quantidade, ao local sobre o descaracterizado, que não é fatal que estejam ameaçadas em Portugal 21 espécies de peixes. Contudo, o capítulo sobre Biodiversidade da Avaliação para Portugal do Millennium Ecosystem Assessment, depois de pintar um quadro muito negro da situação atual da conservação das espécies e dos habitats, diz textualmente que, de entre as respetivas forças motrizes indirectas, se salientam “a situação de Portugal como membro da União Europeia e a influência das políticas e directivas comunitárias tanto a nível ambiental como a nível económico e social. Também relevantes são os efeitos da política agrícola comum, do intenso crescimento populacional urbano e da conjuntura económica do país.”

E por mais que sejamos bombardeados com sugestões de que o problema é de cada um dos portugueses, que somos culpados por usar muita água quando lavamos os dentes, ou por abrir muitas vezes a porta do frigorífico, ou por não levarmos sacos reutilizáveis para o supermercado, é para mim claro que o problema está mais acima. Está nas nossas instituições, naturalmente, nas autarquias, está no governo. Mas está sobretudo na Europa, de onde nos vem o rio de dinheiro que transformou o nosso país na última geração, mas de onde vêm também orientações muito precisas sobre como o gastar. Foi Bruxelas que financiou a barragem do Alqueva, foi dos fundos comunitários que veio o dinheiro para as auto-estradas agora vazias mas que retalharam a continuidade ecológica de tantas regiões.

O reconhecimento dos males da Europa não faz de mim, contudo um eurocéptico. E isto não é um contra-senso! É que é possível subir um degrau ainda: o degrau que nos leva ao nível global, à escala planetária. E aí forças mais poderosas imperam: as forças dos grandes capitais financeiros, de poderosas multinacionais, escudadas atrás de acordos de que pouco se fala mas que moldam tudo isto, como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) ou a agora em discussão Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento (TTIP). Foi em nome dos princípios da primazia do lucro à escala global que a nossa agricultura e a nossa indústria e a nossa pesca foram desmanteladas. É em nome da força bruta da desregulação financeira que está a ser imposta a presente situação ao nosso país.

Neste cenário de forças globais, quem pode defender as lontras contra explorações agrícolas intensivas e mecanizadas, alimentadas por água de uma mega-barragem? Quem pode defender o montado contra a expansão muito mais rentável dos eucaliptais? Eu sozinho não posso, por mais forte que seja a trave que consiga arranjar.

Nenhum de nós, isolado, pode fazer a diferença. Mas forças globais combatem-se a nível global. E a Europa, com todos os seus defeitos, ainda é uma fonte de esperança, ainda tem em si as raízes da liberdade e da democracia, da representatividade e da transparência. Estou no LIVRE porque acredito na necessidade de uma Europa verdadeiramente democrática para reverter a atual corrida para o precipício ecológico. Estou no LIVRE porque acredito que ele poderá ser o ponto de apoio para fazer a diferença em Portugal.


Ponta Delgada, 10 de maio de 2014