sexta-feira, 11 de agosto de 2023

O efeito Dunning-Kruger em dois parágrafos

[em edição, estava no baú desde 2020!!! Já nem sei de quem era a citação :-( ]

 “Eu sou muito adverso a todo o tipo de radicalização. O que espero da política é que contribua para fazer os povos mais felizes e isso passa pela segurança, conforto e prosperidade material e cultural. No plano político o melhor sistema parece ser a democracia representativa liberal. No plano económico o liberalismo capitalista. Com o progresso tecnológico acelerado que estes sistemas permitem, a utopia do fim da escassez de recursos talvez possa ser alcançada

 

O texto já começa mal: deixar subentendido que a radicalização na política impede os povos de serem felizes.

Ora, ser radical é ir à raiz dos problemas, de modo a poder resolvê-los desde a base, em vez de apenas pela rama (metáforas botânicas, notas-te?). Os problemas de hoje requerem uma abordagem radical. Quem o diz é o IPCC e o IPBES (em relação à catástrofe climática e ecológica) e quem tenha olhos na cara (em relação à catástrofe social).

 A segunda premissa é que a democracia representativa liberal aliada ao liberalismo capitalista permitem um progresso tecnológico acelerado que permitirá ultrapassar a escassez de recursos.
São tantas barbaridades juntas que não sei por onde começar.

A expansão tecnológica dos últimos 200 anos, alimentada pelo sistema capitalista de crescimento exponencial perpétuo, é que é a causa da escassez de recursos. Não é um bocado superficial afirmar que o mesmo sistema que consome recursos a uma escala apocalíptica se encarregará de ultrapassar essa escassez?

 A minha premissa é a de que (i) é o sistema capitalista o responsável pelas catástrofes que nos estão a precipitar para um abismo sem precedentes, e (ii) a democracia representativa é a forma encontrada pelo sistema para controlar a populaça.

A democracia representativa resultou historicamente das revoluções que substituíram o poder da nobreza pelo dos capitalistas. A forma de impedir veleidades de democracia direta foi a de, pela força, instituir uma forma de governo "representativo". Basta ver que na sua primeira forma só votavam os homens, e só os ricos. Este sistema foi abrindo concessões, sendo alargado a todos os homens, depois às mulheres, aos pretos, etc. Mas o poder só alargou o horizonte de sufrágio à medida que conseguia esvaziar a política de qualquer poder real.

 E chegámos aqui, quando os governos se sucedem mas as políticas são as mesmas, e os mais cândidos, como o Schaeuble, comentam que (evidentemente!) não se pode permitir que eleições alterem as políticas económicas.

"Eu estou convencido exactamente do contrário pelo que tenho visto acontecer nos últimos séculos comparando a evolução histórica e económica dos diferentes países. Constato que só o capitalismo tem proporcionando o desenvolvimento tecnológico que permitirá que os recursos sejam cada vez menos escassos e cada vais mais abundantes e baratos. Antes da revolução industrial um agricultor alimentava 2 pessoas, pelo que pelo menos metade da população tinha que estar ligada ao sector primário. Agora um agricultor alimenta centenas de pessoas. E o mesmo se vai passando com cada vez mais áreas económicas. E é o mercado que estimula este progresso contínuo e cada vez mais acelerado. E quando a ciência estiver tão desenvolvida que os recursos sejam tão abundantes que deixem de ter valor económico, como a luz do sol ou o ar, deixará de haver economia e poderemos estar todos em casa a receber do estado sem ter que produzir nada (como já vai acontecendo, e bem, com os reformados, doentes, desempregados,  puerperas, etc). Mas até esse dia chegar temos que estudar, trabalhar e poupar muito, para fazer a ciência e a economia avançar de forma realista e sustentada e no futuro virmos todos a ter uma existência digna e confortável. Infelizmente até lá as injustiças das desigualdades naturais vão continuar a evidenciar-se. Devemos tentar mitigá-las com ponderação e bom senso. Não podemos socorrer a todos e nivelar tudo por baixo sob pena de asfixiar o progresso. Nessa ordem de ideias toda a cultura, arte, desporto e actividade recriativa deveria ser radicalmente suprimida enquanto houver uma mínima carência noutras áreas vitais. A sociedade e humanidade não funcionam assim. O progresso faz se aos poucos, numa tentativa de equilíbrio entre a prosperidade económica e amparo aos realmente mais necessitados. "

Este precisa mesmo de sair da sua bolha de macho branco bem da vida. Falo por experiência própria, note-se. Eu era gajo para ter escrito coisas parecidas há 10 anos.

De facto, o progresso de que ele beneficia (e todos nós, bem de vida) é conseguido à custa da exploração e destruição social e ecológica. Começou no séc XV com as “descobertas” e nunca mais parou. O desenvolvimento renascentista da Europa foi construido em cima do genocídio de milhões de nativos americanos e africanos e da pilhagem dos seus recursos. É ler um bocadinho de história que seja objetiva e não envolvida na ideologia nacionalista e racista que ainda hoje (!) coloca nos livros escolares que os portugueses iam a África buscar ouro, marfim e escravos. Depois da fase em que essa exploração foi feita por companhias privadas (as “companhias das índias”, look it up), e da fase em que a exploração foi feita diretamente pelos estados (nas então chamadas colónias) foi só no século XX que muitos desses territórios alcançaram a independência. No entanto qualquer veleidade de escapar da exploração capitalista foi combatida pelos mesmos métodos violentos e mantida depois por um sistema financeiro especificamente desenhado para o efeito. As metáforas do “terceiro mundo” e dos “países em desenvolvimento” escondem o esmagamento militar de qualquer ambição de autocontrolo e a imposição de mecanismos neo-coloniais. A condescendência com ditadores como Mugabe ou Idi Amin, e o encolher de ombros para a pobreza endémica no hemisfério sul (América Latina, África, Ásia) é vergonhosamente racista porque omite o papel dos países do norte em ainda hoje manter esses povos na exploração mais abjeta.

Três conceitos para ele explorar: transfer pricing, tax havens e odious debt. Vá lá que eu dou uma ajuda:

Transfer pricing
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1045235410000481

Tax havens

Brown, E., Cloke, J., & Christensen, J. (2011). The looting continues: Tax havens and corruption. Critical perspectives on international business.

https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/17422041111128249/full/html

Odious debt

Salomon, M. E., & Howse, R. L. (2018). Odious Debt, Adverse Creditors, and the Democratic Ideal.

https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3291009

ou, se for mais de vídeos, pode ver aqui a confissão de um economic hit man, John Perkins: https://www.youtube.com/watch?v=btF6nKHo2i0

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