domingo, 20 de agosto de 2023

A praga do capitalismo

 Nos últimos dias têm vindo a público posições do setor agrícola apelando a um maior controlo de "pragas", nas quais se incluem espécies de aves endémicas e por isso protegidas por legislação regional e europeia. A Secretaria Regional da Agricultura reconheceu que tem quase pronto um Plano de Prevenção de Pragas, o qual inclui autorização para caçar aves protegidas, aparentemente com o aval da Comissão Europeia.

Os argumentos para esta decisão do Governo Regional são que "há um excesso dessas aves protegidas", o qual se traduz em prejuízos para os produtores agrícolas. O secretário regional quer que as populações de aves protegidas estejam "em equilíbrio com (...) a vivência económica de âmbito agrícola".

Neste texto argumento que as populações animais estão sempre em equilíbrio com as condições do meio, e que o debate sobre caçar aves protegidas não tem uma resposta científica, antes expõe um conflito de valores. Concluo que o Governo Regional está alinhado com uma visão capitalista da produção agrícola e pronto a sacrificar os valores da conservação da natureza no altar da maximização do lucro.

Em primeiro lugar, não há nenhum desequilíbrio populacional, nem muito menos um excesso de aves. As aves como o melro ou o pombo-torcaz, assim como os ratos ou os coelhos, são vertebrados de pequeno porte, com vidas relativamente curtas e elevadas taxas de reprodução. As populações destas espécies reagem muito rapidamente às condições do ambiente, mantendo um equilíbrio entre os fatores que as reduzem (predação, doenças) e os fatores que as aumentam (alimento, espaço). Uma tendência de aumento, como a que é agora alegada, implica que durante o período em que o aumento se verificou as condições do ambiente se tenham elas próprias modificado de modo a permitir que morram menos animais, ou que sobrevivam mais (ou ambos). Tecnicamente, não faz sentido falar em "excesso" de uma população animal.

O que está a acontecer neste caso é a PERCEÇÃO, por algumas pessoas, de que há um excesso populacional, a partir do suposto efeito dessas populações sobre a produção agrícola. Ora aqui já é possível ser objetivo, e um estudo tecnicamente bem feito poderia ser um dos pontos centrais do debate. Realço "bem feito", porque solicitar fotografias de torcazes em campos agrícolas não nos diz nada sobre o efeito relativo dessa espécie no rendimento da exploração. E digo "relativo" porque é necessário contabilizar também as perdas resultantes de outros fatores, desde os climáticos até à predação por outras espécies, como lagartixas ou ratos. Ou seja, não negando que as aves se alimentem de produtos agrícolas, fico à espera de um estudo que demostre que as perdas económicas causadas são significativas.

Finalmente, se a avaliação dos prejuízos causados por cada espécie de praga requer um estudo sério, a decisão do que fazer para reduzir os eventuais prejuízos é uma questão de VALORES. Objetivamente, a vida de qualquer animal tem o mesmo valor: ratos, lagartixas, caracóis, melros e baratas cumprem o seu papel ecológico. São os humanos que valorizam mais uma espécie ou outra. Assim, um agricultor dará seguramente mais valor à espécie que está a cultivar, e por isso aplica mondas manuais ou químicas para matar as "ervas daninhas". Muitos de nós, noutro exemplo, damos mais valor ao gato ou ao cão que temos em casa do que ao porco ou à galinha cuja carne saboreamos.

A ciência dá-nos ainda outra escala de valores. O consenso científico estabeleceu ser importante conservar a biodiversidade do planeta. Por isso, uma espécie que está disseminada por todo o planeta (como os ratos ou as baratas) corre menos riscos de desaparecer do que uma que apenas existe numa região limitada. É por isso que, para a conservação da natureza, as populações de animais endémicos (como o pombo-torcaz ou o melro negro) têm mais valor do que as populações de espécies invasoras (como os ratos e os coelhos).

A esfera dos valores estende-se também à forma como se lida com os animais. Os nossos antepassados guardavam os cereais em covas no chão ou em espigueiros para os proteger dos ataques dos ratos. Hoje, a disponibilidade e a aceitação dos venenos permite dispensar medidas estruturais e preventivas como estas. Mas não se pratica o envenenamento de aves ou de coelhos os quais podem, no entanto, ser caçados.

Finalmente, e ainda na esfera dos valores: as explorações agrícolas hoje são entendidas como atividades empresariais, geridas pela lógica capitalista da maximização da eficiência e do lucro. Quando um agricultor aplica veneno oferecido pelo governo, ele está a ser coerente com essa lógica empresarial: reduz os prejuízos causados pelos ratos e não gasta dinheiro. Ganha pelos dois lados.

Naturalmente, os valores de umas pessoas colidem com os valores de outros. Por isso a política é suposto ser uma forma de encontrar um equilíbrio, esse sim, entre valores antagónicos. Nesse sentido, as posições públicas da SRAgricultura alinham claramente com os valores da agricultura intensiva e empresarial; a SRAmbiente, por seu lado, deveria defender os valores da conservação da natureza. Infelizmente, esse equilíbrio parece ter sido já decidido em favor de considerar aves endémicas como alvos legítimos de caça. 

Não havendo aves em excesso, nem provas de que os prejuízos por elas causados sejam significativos, o que está atualmente em discussão são os valores associados à agricultura e à biodiversidade pelo Governo Regional. O governo concebe e promove uma agricultura valorizada pelas lógicas de maximização da eficiência e do lucro, e essa chocará sempre com os valores associados à conservação da biodiversidade. Com a conivência da neo-liberal Comissão Europeia, a decisão do Governo Regional de permitir a caça de aves endémicas é um exemplo claro da incompatibilidade entre o capitalismo e a preservação dos valores ecológicos.

José Manuel N. Azevedo
Biólogo
Membro do LIVRE-Açores

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Ainda as pragas, mas agora em versão oficial

Afinal a Secretaria Regional da Agricultura vai publicar em breve um plano de combate "às pragas", nas quais se incluem espécies de aves protegidas que o Secretário da tutela afirma existirem em excesso. E precisa: "Queremos é que exista uma população em equilíbrio com aquilo que é a vivência económica de âmbito agrícola." Para isso pediram à Comissão Europeia autorização para o abate dessas aves.

As pobres das aves já foram portanto julgadas e condenadas, faltando só serem executadas. E isto sem se conhecer com base em que estudo se determinaram fatores como (i) a densidade populacional de cada espécie, (ii) os danos causados pelas mesmas e, consequentemente (iii) o nível ideal da respetiva população.

É que estudos científicos publicados há poucos. O último é de Lucas Lamelas‑López e Marco Ferrante (2021), dois autores afiliados com o Grupo da Biodiversidade dos Açores. Usando câmaras colocadas em vinhedos nos Biscoitos, na Terceira, em 2016 e 2017, os autores detetaram que os principais consumidores das uvas eram, por esta ordem: as lagartixas (80% dos registos), as aves (25% dos registos, sobretudo pardais e melros, mas também tentilhões e canários) e os ratos (menos de 5%). Notando que os agricultores das áreas em que trabalharam abatem com frequência pombos da rocha e pombos torcazes com o pretexto de reduzir as perdas de uva, os autores declaram explicitamente que estas aves não causam dano e não deveriam ser atacadas: "Two of the five species culled by farmers, one of which is endemic, cause negligible damage and should not be targeted". Parece daqui que combatendo as lagartixas e os pardais (ambas espécies introduzidas e portanto de pouco valor para a conservação da natureza) se conseguiriam resultados suficientemente bons para deixar sossegadas as aves protegidas.

Mas eu sou das pessoas que muitas vezes tenho criticado os que estão no poder por reclamarem mais estudos quando querem adiar uma decisão. Do amplo conjunto de factos que demonstra claramente o caminho a seguir, procura-se uma área menos clara e encomenda- se um novo estudo. Paga-se para empurrar a decisão para a frente. E entretanto fica tudo como está.

Neste caso, parece-me óbvio que quando digo que são precisos estudos é porque não há elementos que permitam tomar uma decisão. Vejamos: onde estão os estudos que indicam que há "um excesso de aves protegidas"? Eu, que gosto muito de pássaros, nunca acho que sejam demais. Mas se o Governo acha que as populações de aves não estão em equilíbrio "com a vivência económica de âmbito agrícola", deve ter dados que o demonstram. Detalhados por espécie, naturalmente, porque um pardal não come o mesmo que um melro nem que um torcaz. E deve ter também uma análise das possíveis soluções, para ter chegado à conclusão que o abate era inevitável. Essa análise também deverá suportar a decisão de abater o quê, onde, quando e em que número. Era bom, finalmente, que o plano prevê-se uma forma de verificar quantas aves foram abatidas e qual o resultado para a "vivência económica de âmbito agrícola".

 É que me custa a crer que estejamos a por em causa as conquistas de anos de defesa da natureza, e os rios de dinheiro gastos em promover os Açores como destino ecológico, para responder a pressões não substanciadas.


Referências:

Lamelas López, L. & Ferrante, M. (2021). Using camera-trapping to assess grape consumption by vertebrate pests in a World Heritage vineyard region. "Journal of Pest Science", 94(2), 585-590. DOI:10.1007/s10340-020-01267-x

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

O efeito Dunning-Kruger em dois parágrafos

[em edição, estava no baú desde 2020!!! Já nem sei de quem era a citação :-( ]

 “Eu sou muito adverso a todo o tipo de radicalização. O que espero da política é que contribua para fazer os povos mais felizes e isso passa pela segurança, conforto e prosperidade material e cultural. No plano político o melhor sistema parece ser a democracia representativa liberal. No plano económico o liberalismo capitalista. Com o progresso tecnológico acelerado que estes sistemas permitem, a utopia do fim da escassez de recursos talvez possa ser alcançada

 

O texto já começa mal: deixar subentendido que a radicalização na política impede os povos de serem felizes.

Ora, ser radical é ir à raiz dos problemas, de modo a poder resolvê-los desde a base, em vez de apenas pela rama (metáforas botânicas, notas-te?). Os problemas de hoje requerem uma abordagem radical. Quem o diz é o IPCC e o IPBES (em relação à catástrofe climática e ecológica) e quem tenha olhos na cara (em relação à catástrofe social).

 A segunda premissa é que a democracia representativa liberal aliada ao liberalismo capitalista permitem um progresso tecnológico acelerado que permitirá ultrapassar a escassez de recursos.
São tantas barbaridades juntas que não sei por onde começar.

A expansão tecnológica dos últimos 200 anos, alimentada pelo sistema capitalista de crescimento exponencial perpétuo, é que é a causa da escassez de recursos. Não é um bocado superficial afirmar que o mesmo sistema que consome recursos a uma escala apocalíptica se encarregará de ultrapassar essa escassez?

 A minha premissa é a de que (i) é o sistema capitalista o responsável pelas catástrofes que nos estão a precipitar para um abismo sem precedentes, e (ii) a democracia representativa é a forma encontrada pelo sistema para controlar a populaça.

A democracia representativa resultou historicamente das revoluções que substituíram o poder da nobreza pelo dos capitalistas. A forma de impedir veleidades de democracia direta foi a de, pela força, instituir uma forma de governo "representativo". Basta ver que na sua primeira forma só votavam os homens, e só os ricos. Este sistema foi abrindo concessões, sendo alargado a todos os homens, depois às mulheres, aos pretos, etc. Mas o poder só alargou o horizonte de sufrágio à medida que conseguia esvaziar a política de qualquer poder real.

 E chegámos aqui, quando os governos se sucedem mas as políticas são as mesmas, e os mais cândidos, como o Schaeuble, comentam que (evidentemente!) não se pode permitir que eleições alterem as políticas económicas.

"Eu estou convencido exactamente do contrário pelo que tenho visto acontecer nos últimos séculos comparando a evolução histórica e económica dos diferentes países. Constato que só o capitalismo tem proporcionando o desenvolvimento tecnológico que permitirá que os recursos sejam cada vez menos escassos e cada vais mais abundantes e baratos. Antes da revolução industrial um agricultor alimentava 2 pessoas, pelo que pelo menos metade da população tinha que estar ligada ao sector primário. Agora um agricultor alimenta centenas de pessoas. E o mesmo se vai passando com cada vez mais áreas económicas. E é o mercado que estimula este progresso contínuo e cada vez mais acelerado. E quando a ciência estiver tão desenvolvida que os recursos sejam tão abundantes que deixem de ter valor económico, como a luz do sol ou o ar, deixará de haver economia e poderemos estar todos em casa a receber do estado sem ter que produzir nada (como já vai acontecendo, e bem, com os reformados, doentes, desempregados,  puerperas, etc). Mas até esse dia chegar temos que estudar, trabalhar e poupar muito, para fazer a ciência e a economia avançar de forma realista e sustentada e no futuro virmos todos a ter uma existência digna e confortável. Infelizmente até lá as injustiças das desigualdades naturais vão continuar a evidenciar-se. Devemos tentar mitigá-las com ponderação e bom senso. Não podemos socorrer a todos e nivelar tudo por baixo sob pena de asfixiar o progresso. Nessa ordem de ideias toda a cultura, arte, desporto e actividade recriativa deveria ser radicalmente suprimida enquanto houver uma mínima carência noutras áreas vitais. A sociedade e humanidade não funcionam assim. O progresso faz se aos poucos, numa tentativa de equilíbrio entre a prosperidade económica e amparo aos realmente mais necessitados. "

Este precisa mesmo de sair da sua bolha de macho branco bem da vida. Falo por experiência própria, note-se. Eu era gajo para ter escrito coisas parecidas há 10 anos.

De facto, o progresso de que ele beneficia (e todos nós, bem de vida) é conseguido à custa da exploração e destruição social e ecológica. Começou no séc XV com as “descobertas” e nunca mais parou. O desenvolvimento renascentista da Europa foi construido em cima do genocídio de milhões de nativos americanos e africanos e da pilhagem dos seus recursos. É ler um bocadinho de história que seja objetiva e não envolvida na ideologia nacionalista e racista que ainda hoje (!) coloca nos livros escolares que os portugueses iam a África buscar ouro, marfim e escravos. Depois da fase em que essa exploração foi feita por companhias privadas (as “companhias das índias”, look it up), e da fase em que a exploração foi feita diretamente pelos estados (nas então chamadas colónias) foi só no século XX que muitos desses territórios alcançaram a independência. No entanto qualquer veleidade de escapar da exploração capitalista foi combatida pelos mesmos métodos violentos e mantida depois por um sistema financeiro especificamente desenhado para o efeito. As metáforas do “terceiro mundo” e dos “países em desenvolvimento” escondem o esmagamento militar de qualquer ambição de autocontrolo e a imposição de mecanismos neo-coloniais. A condescendência com ditadores como Mugabe ou Idi Amin, e o encolher de ombros para a pobreza endémica no hemisfério sul (América Latina, África, Ásia) é vergonhosamente racista porque omite o papel dos países do norte em ainda hoje manter esses povos na exploração mais abjeta.

Três conceitos para ele explorar: transfer pricing, tax havens e odious debt. Vá lá que eu dou uma ajuda:

Transfer pricing
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1045235410000481

Tax havens

Brown, E., Cloke, J., & Christensen, J. (2011). The looting continues: Tax havens and corruption. Critical perspectives on international business.

https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/17422041111128249/full/html

Odious debt

Salomon, M. E., & Howse, R. L. (2018). Odious Debt, Adverse Creditors, and the Democratic Ideal.

https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3291009

ou, se for mais de vídeos, pode ver aqui a confissão de um economic hit man, John Perkins: https://www.youtube.com/watch?v=btF6nKHo2i0

As pragas

[em edição]

As pragas que preocupam os agricultores (1) não são os insetos. Para esses existe um arsenal de armas químicas que é utilizado à discrição, com efeitos negativos claros na biodiversidade regional. [estudos?] O principal ponto de reclamação dos agricultores, claramente o foco da reunião com o Secretário Regional, são... as aves. A saber: a rola turca (uma ave em expansão em toda a Europa e um colonizador recente dos Açores) e o pombo da rocha (que já é considerado uma espécie cinegética), mas também o pombo torcaz e o melro (ambas subespécies endémicas).

A Associação Agrícola de São Miguel afirma que quer um controlo populacional daquelas aves, mas que a Diretiva Aves é um colete de forças que não deixa classificar essas espécies como cinegéticas. Para isso defendem a elaboração de um relatório "muito bem sustentado, muito técnico" mas com uma conclusão pré-estabelecida: mostrar às entidades que estão distantes dos Açores que há população a mais e que há consequências económicas dessa população a mais. O objetivo, assumido, é que essas aves deixem de ser protegidas pela Diretiva Aves e possam ser consideradas cinegéticas e portanto abatidas para "controle populacional".

As secretarias regionais da Agricultura e do Ambiente já pediram, pelos vistos, uma autorização à União Europeia, cujo conteúdo é pouco claro. Na reunião, no entanto, o Secretário Regional da Agricultura considerou que o combate a pragas na Região é "mais difícil" por haver espécies de aves protegidas.

O que me preocupa é ver como a pressão dos agricultores (que agricultores?) está a movimentar o poder político sem que, pelos vistos, exista uma quantificação clara do problema, das suas causas e das possíveis soluções. A história da relação dos humanos com a natureza está cheia de casos destes, em que alegados interesses económicos são usados como justificação para degradar a biodiversidade. Estamos num processo de extinção sem precedentes na história do nosso planeta. Deveras que não aprendemos nada como o passado?

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(1) Açoriano Oriental, 11 agosto 2023, versão impressa, p.5

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Pleno emprego- uma proposta

 Uma revisão de 

The case for a job guarantee
Pavlina R. Tcherneva

Antes de começar: este livro foi escrito para os EUA, mas pode aplicar-se a todos os países com emissão de moeda própria. Poderia portanto aplicar-se à zona euro no seu conjunto. Penso que se poderia aplicar a Portugal numa situação em que se decidisse ignorar as regras do défice, ou se decidisse usar uma moeda complementar. Por esta última via, poderia até aplicar-se a uma região, ou até a uma autarquia.

O desemprego é estrutural ao capitalismo, por duas razões. A primeira é que o capitalismo mercantiliza os comuns, os bens públicos (incluindo o poder interventivo do Estado), minando a capacidade das pessoas de organizarem a sua vida à margem desse sistema económico. Por falta de alternativa, as pessoas são obrigadas a procurar “trabalho”. A segunda razão é que interessa ao capitalismo ter uma massa de pessoas desempregadas, competindo umas com as outras por um lugar no sistema. Esta situação é reconhecida no discurso oficial, que aceita uma taxa “natural” de desemprego. Não se discute o facto de que, seguindo a sua lógica de maximização do lucro, o capitalismo procurará sempre baixar os custos com os trabalhadores, seja reduzindo os salários seja reduzindo o número de empregos criados. Quanto mais pessoas estiverem desempregadas, menores serão os salários e mais precárias as condições de trabalho.

Ora o desemprego não é uma estatística. No mínimo cria uma situação de stress para as pessoas que ficam desempregadas, mas em muitos casos é dilacerante, privando as pessoas do essencial para uma vida digna para si e para as suas famílias, com fome e muitas vezes sem um teto. Uma garantia de emprego digno devia ser um papel fundamental do Estado, e assim o estabelece de facto a Constituição da República Portuguesa, no artigo 58ª:
1. Todos têm direito ao trabalho.
2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover:
a) A execução de políticas de pleno emprego;


É interessante que o programa do atual governo não faz uma única referência a “pleno emprego”, embora apresente 31 referências ao “mercado de trabalho”, a competição entre trabalhadores pelos empregos disponíveis que descrevi acima. Mais grave ainda, o site da Presidência da República Portuguesa (onde estão registadas todas as intervenções do Presidente) não tem uma única referência a “pleno emprego”, embora tenha 4 referências ao dito “mercado de trabalho”. A narrativa oficial é portanto a de que o emprego emerge de alguma forma do sistema económico, e que o papel do Estado é o de manipular o sistema para que o “mercado de trabalho” funcione “da melhor forma possível” (1). O que não for possível, paciência...

A proposta de Pavlina Tcherneva é muito simples:

  1. O Estado assegura um emprego a todos os cidadãos que precisem de um, e enquanto e sempre que precisem dele. O cidadão dirige-se ao Centro de Emprego mais próximo e sai de lá com um contrato de trabalho, começando a trabalhar no dia seguinte.
  2. Esse emprego tem um salário digno, um horário justo e todos os benefícios (segurança social, férias, subsídio de férias e de Natal). É, de facto, desenhado para constituir o padrão mínimo para todos os empregos na economia.

A organização do sistema é a seguinte:

  1. O Governo solicita ofertas de emprego de autarquias, cooperativas e outras entidades sem fins lucrativos
    1. Os empregos estão dirigidos para a transição ecológica ou os cuidados sociais e comunitários. Não se trata de cavar buracos para os tapar a seguir- o programa de pleno emprego dirige-se a tarefas essenciais para a sociedade mas a que o sistema capitalista não dá resposta.
  2. O dinheiro para o programa é inscrito no Orçamento do Estado- as pessoas não são empregadas do Estado mas são pagas por ele. À pergunta “de onde vem o dinheiro?” responde-se da seguinte maneira:
    1. O dinheiro é um bem público (parte dos comuns) e uma prerrogativa do Estado. A Teoria Monetária Moderna (2) deixa claro que a um Estado soberano (ver ressalva no início deste texto) nunca pode faltar dinheiro. O cidadão vulgar tem a perceção de que isto é assim, mas apenas quando se trata de salvar bancos insolventes ou pagar mais-valias de parcerias público-privadas.
    2. Este programa substituiria o que o Estado já gasta com os apoios às empresas e aos desempregados, assim como em assistência social. O programa atuaria ainda como estabilizador dos ciclos económicos, beneficiando toda a sociedade.
  3. Os empregos são disponibilizados através dos Centros de Emprego já existentes, que assim passam a fazer jus ao seu nome.


(1) Ver o enquadramento da política de emprego no site da DGERT, e notar como o pleno emprego estar no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 13/2015 mas não nos seus objectivos.

(2) Ver, por exemplo, https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/a-teoria-monetaria-moderna-contra-a-ditadura-financeira/  

 

sábado, 9 de janeiro de 2021

A esquerda capitalista e a direita capitalista- descubra as diferenças

 

O jornal Ilha Maior pediu a cada um dos deputados eleitos pelo Pico uma avaliação do programa do governo que nos calhou nos Açores.A crítica de Miguel Costa (PS) revela inadvertidamente o verdadeiro problema político do nosso tempo. 
No programa apresentado pelo PSD, CDS e PPM, com o apoio do IL e do C****a, "não foi apresentada, como prometida, uma verdadeira alternativa de governação", diz Miguel Costa daquele que é, segundo ele, "um documento que não trouxe nada de novo".
A democracia-que-temos resulta nisto: os partidos do dito arco da governação sucedem-se mas as políticas são as mesmas. Não podia ser de outra maneira: é requerido um espetáculo político, guerras de alecrim e manjerona, dramatizações ocas, para tentar enganar o povo, mantendo a ilusão de que a mudança de partido no governo corresponde a uma mudança de políticas. Como Miguel Costa reconhece, o que temos é, pelo contrário, a mesma política, só trocando o fato cor-de-rosa por outro cor-de-laranja. 
Por trás deste circo, as mesmas forças do capitalismo global mantêm o seu domínio sobre as narrativas: austeridade para equilibrar as contas públicas, apoios do Estado às empresas, recurso ao sistema financeiro privado para investimento e criação de emprego. Na paz podre da União Europeia, tem bastado isso. Nos países mais desfavorecidos, de África à América do Sul (mas também na própria Europa) o capitalismo mostra o dentes, assassinando ativistas e reprimindo violentamente os protestos quando controla o governo, forçando golpes de estado em caso contrário.
Mas as pessoas há muitos anos que perceberam que essas políticas, seja qual for a cor de que estejam revestidas, não respondem às suas necessidades. A primeira reação foi a abstenção: desligarem-se do jogo político, percebido como inútil, ao mesmo tempo que se procuram desenrascar como podem. Neste momento a proporção de pessoas que não se conseguem desenrascar está a atingir um nível tão elevado, a degradação social e económica é de tal ordem que vemos a ascensão de movimentos que têm como alvo aquilo que pensam ser a causa dos seus problemas: a corrupção do sistema político.
A descida para o fascismo (como se vê nos enormes apoios financeiros ao C***a e à IL) é a forma que o capitalismo global encontra para manter o controlo da populaça. O que me custa ver este espetro negro a descer sobre esta terra que aprendi a amar...

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Rutura ou transformação

 



O capitalismo está a destruir o nosso suporte de vida planetário, derretendo o gelo das calotas polares, aniquilando os grandes ecossistemas ainda existentes no planeta (Amazónia?), apodrecendo os oceanos (sim, temos eutrofização à escala oceânica!). O capitalismo está a causar um sofrimento indizível a milhares de milhões de seres humanos, mortos em guerras ou a fugir delas ou das carências alimentares e sanitárias que elas provocam, privados dos meios mais básicos de subsistência (dos sem abrigo no coração da abastada Europa às centenas de milhar de agricultores em protesto na Índia). E no entanto os capitalistas controlam completamente as esferas do poder, mantendo a populaça sob controle através da violência direta, policial ou militar, ou da violência indirecta, usando uma arquitetura legal que assegura que nada pode mudar e um controle da informação que amputa de alternativas a imaginação.

O que resta a quem consegue escapar da Matrix (ou sair da caverna)? Se quiser retirar o poder das garras das elites, onde deve aplicar os seus esforços?

Dando de barato que quem tomou o comprimido vermelho já sabe que o sistema não pode ser reformado, parece apenas restar a opção da revolta, da revolução. Mas essa opção não tem um registo histórico muito apelativo: se a Revolução Francesa ou o 25 de Abril ensinaram alguma coisa foi que é mais fácil começar uma revolução do que assegurar que ela cumpre o seu objetivo. E a razão é simples: as revoluções fazem-se a olhar para trás, para o que não se quer, e aí é fácil ter consensos. Mas no dia seguinte é preciso concordar para onde se quer ir, e a divisão sobre os futuros possíveis abre o flanco aos contra-revolucionários, que sabem muito bem o que querem.

Mas existe outro caminho para a transformação da sociedade: trabalhar com os setores que, em qualquer sociedade, estão já à margem do capitalismo ou mesmo em oposição a ele. Das cooperativas de produção às comunidades indígenas ou de novos rurais, em todos os contextos em que a cooperação e a solidariedade se sobreponham à competição e ao individualismo está o embrião da sociedade do futuro. Tudo o que Neo tem a fazer é trabalhar num desses contextos, reforçando-o, ou dedicar-se a ligar pessoas e entidades de áreas diferentes, criando sinergias, ou ainda abrir espaço no capitalismo para que estas bolsas de humanidade se possam expandir. Este é um caminho lento e sem sucesso garantido mas que pelo menos permite a construção gradual de uma visão partilhada do futuro, ao mesmo tempo que se constroem as estruturas de poder em que ele se apoiará. Em “Envisioning Real Utopias” Erik Olin Wright elabora uma Teoria da Transformação, concluindo que esta “Transformação Intersticial” é uma parte do processo de aprendizagem coletiva que tem que acontecer no caminho para um socialismo entendido como o poder democrático sobre a distribuição e o uso dos recursos produtivos.