domingo, 20 de agosto de 2023

A praga do capitalismo

 Nos últimos dias têm vindo a público posições do setor agrícola apelando a um maior controlo de "pragas", nas quais se incluem espécies de aves endémicas e por isso protegidas por legislação regional e europeia. A Secretaria Regional da Agricultura reconheceu que tem quase pronto um Plano de Prevenção de Pragas, o qual inclui autorização para caçar aves protegidas, aparentemente com o aval da Comissão Europeia.

Os argumentos para esta decisão do Governo Regional são que "há um excesso dessas aves protegidas", o qual se traduz em prejuízos para os produtores agrícolas. O secretário regional quer que as populações de aves protegidas estejam "em equilíbrio com (...) a vivência económica de âmbito agrícola".

Neste texto argumento que as populações animais estão sempre em equilíbrio com as condições do meio, e que o debate sobre caçar aves protegidas não tem uma resposta científica, antes expõe um conflito de valores. Concluo que o Governo Regional está alinhado com uma visão capitalista da produção agrícola e pronto a sacrificar os valores da conservação da natureza no altar da maximização do lucro.

Em primeiro lugar, não há nenhum desequilíbrio populacional, nem muito menos um excesso de aves. As aves como o melro ou o pombo-torcaz, assim como os ratos ou os coelhos, são vertebrados de pequeno porte, com vidas relativamente curtas e elevadas taxas de reprodução. As populações destas espécies reagem muito rapidamente às condições do ambiente, mantendo um equilíbrio entre os fatores que as reduzem (predação, doenças) e os fatores que as aumentam (alimento, espaço). Uma tendência de aumento, como a que é agora alegada, implica que durante o período em que o aumento se verificou as condições do ambiente se tenham elas próprias modificado de modo a permitir que morram menos animais, ou que sobrevivam mais (ou ambos). Tecnicamente, não faz sentido falar em "excesso" de uma população animal.

O que está a acontecer neste caso é a PERCEÇÃO, por algumas pessoas, de que há um excesso populacional, a partir do suposto efeito dessas populações sobre a produção agrícola. Ora aqui já é possível ser objetivo, e um estudo tecnicamente bem feito poderia ser um dos pontos centrais do debate. Realço "bem feito", porque solicitar fotografias de torcazes em campos agrícolas não nos diz nada sobre o efeito relativo dessa espécie no rendimento da exploração. E digo "relativo" porque é necessário contabilizar também as perdas resultantes de outros fatores, desde os climáticos até à predação por outras espécies, como lagartixas ou ratos. Ou seja, não negando que as aves se alimentem de produtos agrícolas, fico à espera de um estudo que demostre que as perdas económicas causadas são significativas.

Finalmente, se a avaliação dos prejuízos causados por cada espécie de praga requer um estudo sério, a decisão do que fazer para reduzir os eventuais prejuízos é uma questão de VALORES. Objetivamente, a vida de qualquer animal tem o mesmo valor: ratos, lagartixas, caracóis, melros e baratas cumprem o seu papel ecológico. São os humanos que valorizam mais uma espécie ou outra. Assim, um agricultor dará seguramente mais valor à espécie que está a cultivar, e por isso aplica mondas manuais ou químicas para matar as "ervas daninhas". Muitos de nós, noutro exemplo, damos mais valor ao gato ou ao cão que temos em casa do que ao porco ou à galinha cuja carne saboreamos.

A ciência dá-nos ainda outra escala de valores. O consenso científico estabeleceu ser importante conservar a biodiversidade do planeta. Por isso, uma espécie que está disseminada por todo o planeta (como os ratos ou as baratas) corre menos riscos de desaparecer do que uma que apenas existe numa região limitada. É por isso que, para a conservação da natureza, as populações de animais endémicos (como o pombo-torcaz ou o melro negro) têm mais valor do que as populações de espécies invasoras (como os ratos e os coelhos).

A esfera dos valores estende-se também à forma como se lida com os animais. Os nossos antepassados guardavam os cereais em covas no chão ou em espigueiros para os proteger dos ataques dos ratos. Hoje, a disponibilidade e a aceitação dos venenos permite dispensar medidas estruturais e preventivas como estas. Mas não se pratica o envenenamento de aves ou de coelhos os quais podem, no entanto, ser caçados.

Finalmente, e ainda na esfera dos valores: as explorações agrícolas hoje são entendidas como atividades empresariais, geridas pela lógica capitalista da maximização da eficiência e do lucro. Quando um agricultor aplica veneno oferecido pelo governo, ele está a ser coerente com essa lógica empresarial: reduz os prejuízos causados pelos ratos e não gasta dinheiro. Ganha pelos dois lados.

Naturalmente, os valores de umas pessoas colidem com os valores de outros. Por isso a política é suposto ser uma forma de encontrar um equilíbrio, esse sim, entre valores antagónicos. Nesse sentido, as posições públicas da SRAgricultura alinham claramente com os valores da agricultura intensiva e empresarial; a SRAmbiente, por seu lado, deveria defender os valores da conservação da natureza. Infelizmente, esse equilíbrio parece ter sido já decidido em favor de considerar aves endémicas como alvos legítimos de caça. 

Não havendo aves em excesso, nem provas de que os prejuízos por elas causados sejam significativos, o que está atualmente em discussão são os valores associados à agricultura e à biodiversidade pelo Governo Regional. O governo concebe e promove uma agricultura valorizada pelas lógicas de maximização da eficiência e do lucro, e essa chocará sempre com os valores associados à conservação da biodiversidade. Com a conivência da neo-liberal Comissão Europeia, a decisão do Governo Regional de permitir a caça de aves endémicas é um exemplo claro da incompatibilidade entre o capitalismo e a preservação dos valores ecológicos.

José Manuel N. Azevedo
Biólogo
Membro do LIVRE-Açores

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