quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Ainda as pragas, mas agora em versão oficial

Afinal a Secretaria Regional da Agricultura vai publicar em breve um plano de combate "às pragas", nas quais se incluem espécies de aves protegidas que o Secretário da tutela afirma existirem em excesso. E precisa: "Queremos é que exista uma população em equilíbrio com aquilo que é a vivência económica de âmbito agrícola." Para isso pediram à Comissão Europeia autorização para o abate dessas aves.

As pobres das aves já foram portanto julgadas e condenadas, faltando só serem executadas. E isto sem se conhecer com base em que estudo se determinaram fatores como (i) a densidade populacional de cada espécie, (ii) os danos causados pelas mesmas e, consequentemente (iii) o nível ideal da respetiva população.

É que estudos científicos publicados há poucos. O último é de Lucas Lamelas‑López e Marco Ferrante (2021), dois autores afiliados com o Grupo da Biodiversidade dos Açores. Usando câmaras colocadas em vinhedos nos Biscoitos, na Terceira, em 2016 e 2017, os autores detetaram que os principais consumidores das uvas eram, por esta ordem: as lagartixas (80% dos registos), as aves (25% dos registos, sobretudo pardais e melros, mas também tentilhões e canários) e os ratos (menos de 5%). Notando que os agricultores das áreas em que trabalharam abatem com frequência pombos da rocha e pombos torcazes com o pretexto de reduzir as perdas de uva, os autores declaram explicitamente que estas aves não causam dano e não deveriam ser atacadas: "Two of the five species culled by farmers, one of which is endemic, cause negligible damage and should not be targeted". Parece daqui que combatendo as lagartixas e os pardais (ambas espécies introduzidas e portanto de pouco valor para a conservação da natureza) se conseguiriam resultados suficientemente bons para deixar sossegadas as aves protegidas.

Mas eu sou das pessoas que muitas vezes tenho criticado os que estão no poder por reclamarem mais estudos quando querem adiar uma decisão. Do amplo conjunto de factos que demonstra claramente o caminho a seguir, procura-se uma área menos clara e encomenda- se um novo estudo. Paga-se para empurrar a decisão para a frente. E entretanto fica tudo como está.

Neste caso, parece-me óbvio que quando digo que são precisos estudos é porque não há elementos que permitam tomar uma decisão. Vejamos: onde estão os estudos que indicam que há "um excesso de aves protegidas"? Eu, que gosto muito de pássaros, nunca acho que sejam demais. Mas se o Governo acha que as populações de aves não estão em equilíbrio "com a vivência económica de âmbito agrícola", deve ter dados que o demonstram. Detalhados por espécie, naturalmente, porque um pardal não come o mesmo que um melro nem que um torcaz. E deve ter também uma análise das possíveis soluções, para ter chegado à conclusão que o abate era inevitável. Essa análise também deverá suportar a decisão de abater o quê, onde, quando e em que número. Era bom, finalmente, que o plano prevê-se uma forma de verificar quantas aves foram abatidas e qual o resultado para a "vivência económica de âmbito agrícola".

 É que me custa a crer que estejamos a por em causa as conquistas de anos de defesa da natureza, e os rios de dinheiro gastos em promover os Açores como destino ecológico, para responder a pressões não substanciadas.


Referências:

Lamelas López, L. & Ferrante, M. (2021). Using camera-trapping to assess grape consumption by vertebrate pests in a World Heritage vineyard region. "Journal of Pest Science", 94(2), 585-590. DOI:10.1007/s10340-020-01267-x

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